segunda-feira, 27 de junho de 2011

Tahar Ben Jelloun

Que meu povo me perdoe


Você que não sabe ler

tome meus poemas
tome meus livros

faça-os fogueira para aquecer suas solidões
que cada palavra alimente sua brasa
que cada sopro permaneça no céu que se abre

Você que não sabe escrever
que seu corpo e seu sangue me contem a história do país
fale


Seria ilusão do arco-íris
ser seu
deste corpo mutilado

Lerei os livros ao inverso
para ler melhor em seu rosto um campo de flores

Falarei a língua dos bosques e da terra
para entrar na multidão que se rebela

Desembarcarei nas feridas de sua memória
e habitarei seu corpo que se cala
Anunciaremos juntos a primavera às crianças desamparadas

Anunciaremos o sol moribundo ao astro que se esvazia
Anunciaremos uma nova vida à montanha anônima que avança

Enquanto eles tratam de sua burocracia
dançam e pisoteiam as costas de homens e mulheres
riem e comem o fígado das mães em luto
Devolveremos a besta desfigurada aos arquivos ministeriais

A história não intenta mais mudar
agarra-se às fibras da morte
e preside a sessão de abertura no abatedouro da cidade

Nossa história é um território de pragas que interrompe uma primavera de euforia

Lembre-se
semeávamos esperança pelos campos
retornávamos à cidade com a terra grávida

descobríamos as árvores selvagens prontas a tocar o céu
e os milhares de voluntários a conduzir o país ao cume solar

acreditávamos na aurora próspera
que atendia ao chamado das crianças
a rua dançava em nossos braços
esquecíamos que a luz podia criar uma alma estranha
inebriávamo-nos ao fogo para contemplar melhor o brilho do céu

Agora, cidade e o céu estão decompostos
o sonho estilhaçado derrama sua pena nas ruelas ermas

A esperança do povo está na espera:
longas sextas-feiras
para tomar vinho
para fumar kif
comendo vermes
sob o testemunho do sol

os outros
mãos e sexos corrompidos
jogam poker apostando nossa memória,
que se esvanece
(nossa memória repousa)

Povo,
minha cabeça está pesada
é carniça
fede o verbo
e, enfim, tomba

Entrego-a
à víbora maldita

nossa loucura
nossa cólera
Envoltas na maldição da serpente.”

(in Cicatrices du soleil / Cicatrizes do sol)

(trad. joão monteiro)

foto: Michel Giliberti ("porta azul")

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