domingo, 19 de maio de 2013

propaganda



                                               perdi o fôlego

                                             
                     

                                               por um


                                        FOLDER      



(in gavetário, Curitiba: Medusa, 2012)

Paisagem conhecida


                                               par de sapatos
                                               ao canto


                                                                                  roupas estiradas
                                                                                  sob o espelho


                                               meia dobra de lençol
                                                                       (ofegante pouco a pouco)

                                   uma porção de noite
                                                           (divisa em frestas)


                                                                      quadro inclinado
                                                                      quatro tombos


                                   jarro d'água ao pé da cama,
                                   o mais absoluto vigor
 
 
(in gavetário, Curitiba: Medusa, 2012) 

Jack Kerouac


THREE AMERICAN HAIKU


The moon had
A cat's mustache
For a second



Crossing the football Field
Coming home from work –
The lonely businessman



No telegram today
Only more leaves
Fell.



(in poesia beat, org. trad. Sérgio Cohen, Azougue, 2012)

José Lino Grünewald (2)


quarto escuro

I – encantamento

o belo transpairava vidro a vidro
e céu a céu a lazulita céu a céu
ao reverso refletido o belo corroía
e a vista se feria em filoxeras de alúmen
irisado – movi-me em aves múltiplas
e sol, ar e luas, pássaros céu a céu –
carrossel – baila o sapo no escuro opaco
no escuropaco mais saltita no muxoxo
o tic-tac tic-tac tic-tac salita
o relógio mais solúvel às horas sem relance
e céu a céu a lazulita céu a céu
trazia cigarros de cristal na maresia
de vento a vento soprando volucrinas
zia zia zia zia zi zi zi zi zi z.  iiiii
dissolvidas no volver da persiana

II – vôo

o belo baila e me trespassa – passa
passatravés paralém leva, vela, os lençóis
deleite de luar – o leite bóia no espaço
e lua ao céu voa voa lua ao léu
vogo ao céu – os pés no firmamento
fauna escura, luzir de floralada
leve sortilégio de plumas endormidas
lua ao léu voa voa lua ao léu
papoula – floração de lentejoulas
lua ao léu vago vago lua ao léu
ao céu imenso inseto de alumínio –
tênues antenas, vidro a vidro em espiral até
vidro a vidro sem escuro volta o quarto

III – dia

claro, sol ar, sem lâmpada
cresce o quarto – diuturna melopéia
o relógio pouco a pouco logra o tempo
dia agora as rodas me roendo
as rodas dente a dente me roendo
luz opaca sobrepaira contra o leito
fio a fio a retina romoendo
o relógio pouco a pouco logra o tempo
e o ruído romaria de instrumentos
confraria de metal rugindo rasgando
as rodas dente a dente me roendo
obra e via de janela rio aberto
e o relógio pouco a pouco logra o tempo
e fio a fio rói o tempo fio a fio
rola o tempo que me rói na toca rota

(in Escreviver, Rio de Janeiro: Perspectiva, FBN, 2008)

sábado, 18 de maio de 2013

José Lino Grünewald

amoristes



     Et bien
                      Circe
     sim        a deusa de justa coifa
                                  não?
     digo: alice                                     aelia?
     não!

                    mais!
                                  hélice
                              braço vento
     e a cavalgada fantástica
     oui, une chevauchée fantastique
     les chevaux sur ses cheveux
     la tête derangée
     TÍMpano a TÍMpano o soar das TROMpas
     alice     o-ni-ri-ca-men-te
                    mas o espelho meu
     sim, o espelho, o outro lado
     o outro lado – lago
     e Cisne-Rei sou
     penas e palmas
     meu peito majestosamente macio
     e, pétala a pétala, ela, empreende o coração
     o coração? um menear de ombros à tarde
     tédio, cão cinzento
     lambe-me as virilhas
                             e à noite?
     Ah, noite. Sete nós, sul
     vento gosto a sal
     e contra a coifa
     nem escudo cor de juba
     e o farol que acende a foice em falo
     acende meu punho – fábula
     pobre em sugestão de peixe
     eu     a voz
            flauta acesa em treva imensa
     floco
            falo
                 fole
                      sopro
     "Se abrasa lumbre con lumbre
     La misma llama pequeña
     Mata dos espigas juntas"
     seios e trança
     noiva
     ela veio
     e agora?
     findas bodas
     após as galas; os ouropéis, a prata suja
     .......................................................
     – ah! la tristesse
     – paresse...
     – de quoi?
     – de rêver
     – à toi?
     – de songer
     – à toi?
     – à moi?
     – pourquoi?

     – e a glória?
     – está nos entrelírios da flor que entrelaças!
     – com meus braços... lassos
     – laços
     – então, só poesia?
     – seu colo!
     – decolo
     – ave!
     – eva
     – o lirismo...
     – pantomimas de pierrot
     – ah!     la chair
     – oui la chair, mon cher
     (e no arame as filigranas de arlequim)
     ........................................
     ave? eva?
     Alice   hélice?
            clara
     caiu em campa calma
            solta
     célere assusta o pajem e
     veste o rei
                  espero
     mais nunca, diria aos seteiros
     o vigia, rainha
     e em qualquer charco
     uma corça de ventre depilado
                 espero
     e tutto questo per una donna
     una bella figlia

     So, Circe
     yes
             or
               
                 may be
                        no
     why?  so
                 I say Mona Lisa
     not     so     italian?
     perhaps
                but
     quite una donna
     a lady
     black-dressed when
     horses blowing her hair
     I call Alice!
     I sing Circe
     and she:
     none but une femme
     a lonely heart?
     sim     talvez
     e mais toda a quase quietude da pomba


(in Escreviver, Rio de Janeiro: Perspectiva, FBN, 2008)
 

Mário Chamie

POETA MALDITO
 
 
Sou o poeta maldito.
Tudo o que digo e repito
é desdito
e é negado.

Mas nem por ser
maldito e poeta,
sou um poeta coitado;
pois se é desdito e renegado
tudo o que hoje digo,
tudo o que agora falo
amanhã será lembrado.

O poeta assim ouvido
diz bem o que é pensado:
repensa o dito desdito
e de poeta maldito
faz o dito bem-amado:
o dito que pensa e renova
o seu futuro presente
no seu futuro passado.

Sou o poeta maldito.
Tudo o que hoje digo
será sempre o meu legado.

Antes, depois e durante,
fui o futuro passado.
Sou o futuro presente
de tudo que agora falo.

Bendito ou mal-amado,
digo e repito constante
a todo poeta coitado:
sou a verdade do escárnio
que celebra o seu ditado
e renega o celebrado.

 
(in Horizonte de Esgrimas, Ribeirão Preto: Funpec editora, 2002)
 

João Cabral de Melo Neto

PAISAGEM DO CAPIBARIBE

II

§ Entre a paisagem
   o rio fluía
   como uma espada de líquido espesso.
   Como um cão
   humilde e espesso.

§ Entre a paisagem
   (fluía)
   de homens plantados na lama;
   de casas de lama
   plantadas em ilhas
   coaguladas na lama;
   paisagem de anfíbios
   de lama e lama.

§ Como o rio
   aqueles homens
   são como cães sem plumas
   (um cão sem plumas
   é mais
   que um cão saqueado;
   é mais
   que um cão assassinado.

§ Um cão sem plumas
   é quando uma árvore sem voz.
   É quando de um pássaro
   suas raízes no ar.
   É quando a alguma coisa
   roem tão fundo
   até o que não tem).

§ O rio sabia
   daqueles homens sem plumas.
   Sabia
   de suas barbas expostas,
   de seu doloroso cabelo
   de camarão e estopa.

§ Ele sabia também
   dos grandes galpões da beira dos cais
   (onde tudo
   é uma imensa porta
   sem portas)
   escancarados
   aos horizontes que cheiram a gasolina.

§ E sabia
   da magra cidade de rolha,
   onde homens ossudos,
   onde pontes, sobrados ossudos
   (vão todos
   vestidos de brim)
   secam
   até sua mais funda caliça;

§ Mas ele conhecia melhor
   os homens sem pluma.
   Estes
   secam
   ainda mais além
   de sua caliça extrema;
   ainda mais além
   de sua palha;
   mais além
   da palha de seu chapéu;
   mais além
   até
   da camisa que não têm;
   muito mais além do nome
   mesmo escrito na folha
   do papel mais seco.

§ Porque é na água do rio
   que eles se perdem
   (lentamente
   e sem dente).
   Ali se perdem
   (como uma agulha não se perde).
   Ali se perdem
   (como um relógio não se quebra).

§ Ali se perdem
   como um espelho não se quebra.
   Ali se perdem
   como se perde a água derramada:
   sem o dente seco
   com que de repente
   num homem se rompe
   o fio de homem.

§ Na água do rio,
   lentamente,
   se vão perdendo
   em lama; numa lama
   que pouco a pouco
   também não pode falar:
   que pouco a pouco
   ganha os gestos defuntos
   da lama;
   o sangue de goma,
   o olho paralítico
   da lama.

§ Na paisagem do rio
   difícil é saber
   onde começa o rio;
   onde a lama
   começa do rio;
   onde a terra
   começa da lama;
   onde começa o homem
   naquele homem.

§ Difícil é saber
   se aquele homem
   já não está
   mais aquém do homem;
   mais aquém do homem
   ao menos capaz de roer
   os ossos do ofício;
   capaz de sangrar
   na praça;
   capaz de gritar
   se a moenda lhe mastiga o braço;
   capaz
   de ter a vida mastigada
   e não apenas
   dissolvida
   (naquela água macia
   que amolece seus ossos
   como amoleceu as pedras).

[O cão sem plumas, 1949-1950]

(in Melhores Poemas João Cabral de Melo Neto, sel. Antonio Carlos Secchin, São Paulo: Global, 2010)

Clarice Lispector [Água viva]

 
Espelho? Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. E é coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. Ver-se a si mesmo é extraordinário. Como um gato de dorso arrepiado, arrepio-me diante de mim. Do deserto também voltaria vazia, iluminada e translúcida, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho.
 
A sua forma não importa: nenhuma forma consegue circunscrevê-lo e alterá-lo. Espelho é luz. Um pedaço mínimo de espelho é sempre o espelho todo.
 
Tire-se a sua moldura ou a linha de seu recortado, e ele cresce assim como água se derrama.
 
O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo vem se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem – esse alguém então percebeu o seu mistério de coisa. Para isso há de se surpreendê-lo quando está sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em simples imagem de uma agulha, tão sensível é o espelho na sua qualidade de reflexão levíssima, só imagem e não o corpo. Corpo de coisa.
 
(in Água viva, Rio de Janeiro: Rocco, 1998)
 

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Emil Cioran (5)

 
Sinto-me como um maratonista que, de repente, abandonando a prova, põe-se a meditar sobre a corrida.
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Quando nos tornamos obcecados por nossas infâncias, é possível dizer, a partir de então, que a jornada está cumprida.  
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O que se costuma denominar "requinte" é, na verdade, status de precariedade.
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Uma das coisas mais importantes na vida é encontrar o diapasão e, assim, sentir a frequência da alma.
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A tristeza da compreensão – eis o maior desespero de um escritor.
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Um escritor respeitável teme o sucesso, não o cobiça.
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O elo mais profundo entre os seres é exprimível pela música.
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Um homem de virtude seria, a princípio, um homem desprovido de ambições.
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A metafísica corresponde à busca de respostas para justificar o que chamamos de instinto.
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Com o passar do tempo, é normal que nos habituemos ao abandono, usufruindo de todas as suas possibilidades com alegria. Ridículo seria sofrer por isso, em vez de compreender a plenitude do momento.
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A verdadeira elegância moral é a arte de mascarar conquistas como tropeços.
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De todas as formas de monotonia, a pior é a afirmação.
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Entre "misticismo" e "niilismo" há diferença lexical apenas, ou seja, a vivência do "nada" pressupõe uma ordem mística.

(Cadernos I e II, prefácio de Simone Boué. Bucareste: Humanitas, 2010)