sábado, 18 de maio de 2013

João Cabral de Melo Neto

PAISAGEM DO CAPIBARIBE

II

§ Entre a paisagem
   o rio fluía
   como uma espada de líquido espesso.
   Como um cão
   humilde e espesso.

§ Entre a paisagem
   (fluía)
   de homens plantados na lama;
   de casas de lama
   plantadas em ilhas
   coaguladas na lama;
   paisagem de anfíbios
   de lama e lama.

§ Como o rio
   aqueles homens
   são como cães sem plumas
   (um cão sem plumas
   é mais
   que um cão saqueado;
   é mais
   que um cão assassinado.

§ Um cão sem plumas
   é quando uma árvore sem voz.
   É quando de um pássaro
   suas raízes no ar.
   É quando a alguma coisa
   roem tão fundo
   até o que não tem).

§ O rio sabia
   daqueles homens sem plumas.
   Sabia
   de suas barbas expostas,
   de seu doloroso cabelo
   de camarão e estopa.

§ Ele sabia também
   dos grandes galpões da beira dos cais
   (onde tudo
   é uma imensa porta
   sem portas)
   escancarados
   aos horizontes que cheiram a gasolina.

§ E sabia
   da magra cidade de rolha,
   onde homens ossudos,
   onde pontes, sobrados ossudos
   (vão todos
   vestidos de brim)
   secam
   até sua mais funda caliça;

§ Mas ele conhecia melhor
   os homens sem pluma.
   Estes
   secam
   ainda mais além
   de sua caliça extrema;
   ainda mais além
   de sua palha;
   mais além
   da palha de seu chapéu;
   mais além
   até
   da camisa que não têm;
   muito mais além do nome
   mesmo escrito na folha
   do papel mais seco.

§ Porque é na água do rio
   que eles se perdem
   (lentamente
   e sem dente).
   Ali se perdem
   (como uma agulha não se perde).
   Ali se perdem
   (como um relógio não se quebra).

§ Ali se perdem
   como um espelho não se quebra.
   Ali se perdem
   como se perde a água derramada:
   sem o dente seco
   com que de repente
   num homem se rompe
   o fio de homem.

§ Na água do rio,
   lentamente,
   se vão perdendo
   em lama; numa lama
   que pouco a pouco
   também não pode falar:
   que pouco a pouco
   ganha os gestos defuntos
   da lama;
   o sangue de goma,
   o olho paralítico
   da lama.

§ Na paisagem do rio
   difícil é saber
   onde começa o rio;
   onde a lama
   começa do rio;
   onde a terra
   começa da lama;
   onde começa o homem
   naquele homem.

§ Difícil é saber
   se aquele homem
   já não está
   mais aquém do homem;
   mais aquém do homem
   ao menos capaz de roer
   os ossos do ofício;
   capaz de sangrar
   na praça;
   capaz de gritar
   se a moenda lhe mastiga o braço;
   capaz
   de ter a vida mastigada
   e não apenas
   dissolvida
   (naquela água macia
   que amolece seus ossos
   como amoleceu as pedras).

[O cão sem plumas, 1949-1950]

(in Melhores Poemas João Cabral de Melo Neto, sel. Antonio Carlos Secchin, São Paulo: Global, 2010)

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