domingo, 30 de junho de 2013
Marina Tsvetáieva (3)
A roupa branca eu lavo no rio,
Duas florzinhas eu crio.
Toca o sino – eu me persigno,
No tempo da fome – me afino.
A alma e o cabelo – como seda.
Mais cara que a vida – a boa vereda.
Cumpro fiel a minha obrigação.
– Mas amo você – lobo e ladrão!
(Марина Цветaева, in Indícios flutuantes, trad. Aurora F. Bernardini, Martins Fontes, 2006)
Carlos Frias de Carvalho (5)
Segredos do ar
a álvaro negro
habitas a casa
com o silêncio
da luz
a cor é o eco
que a voz
não reduz
esboças
no espelho
segredos do ar
vigias as vigas
as traves
o olhar
preenches as sombras
que vias
no vão
rasgas janelas
algumas
no chão
**
vento é tudo
a fernando pessoa
vento é tudo
alma alada
sombra nada
corpo mudo
(in lugares do vento, Francisco Alves Editora, Rio de Janeiro, 2009)
terça-feira, 25 de junho de 2013
Octavian Paler: autorretrato...
AUTORRETRATO ANTE O ESPELHO QUEBRADO
[Autoportret într-o oglindǎ spartǎ]
Quando finalmente seriam os sonhos mais tangíveis, dei-me conta: também as paixões envelhecem. Não sou capaz de assegurar minhas próprias vontades. Não me faltaram, decerto, metas falsas e entusiasmos pueris. Jamais minha imaginação concebeu um mundo sem ti. Ainda que não assumas o comum e paranóico orgulho de imaginar-te ao centro do mundo, algo sempre duro de admitir, faltou-te inteligência ou capacidade para aceitar que ninguém ensina o que quer que seja, exceto retratos amarelados, velhas fotos lançadas à lixeira tão logo partas. Aos outros, somos marionetes bufas, personagens melhores [ou atuantes patéticos]. Todas as certezas que já tive esvaíram-se, sem ressalva alguma. Também as alegrias passadas assumem tom melancólico na lembrança. O passado é vivo, integra o presente e o influencia na proporção do conflito diário. “Daqui a pouco” transforma-se em “mais tarde”. Comecei a perceber que, de atores em cena, tornamo-nos figurantes. E a memória revolve-se em perdão. A lembrança tem um dom estivo, dá-nos o verão como estação de destino. Hoje, sobram-me dúvidas; fito o céu apenas com a esperança de um guarda-chuva, como todos aqui em Bucareste, que, sob nenhum lirismo, admiram e respiram fumaça [quando chove, inevitavelmente pisamos em poças múltiplas]. Associando-me a outros, a atmosfera, de tão dura, não me permite integrar, e acabo sempre só. Porque busco alguma coisa [pouca coisa mas algo] e sou errante num mundo de tudo que te dá nada. A humanidade tomou o lugar do próprio homem. Hoje, preciso apenas de um muro para levantar e, por não o encontrar, eis o desespero. Uma vida medíocre é justificável. A mediocridade das ilusões, todavia, é inescusável. E continuamos sonhando, mais e mais [sem limites]. Por quê? Talvez, possa-me abandonar sobre a imagem quebrada do espelho, sem o temor do pecado. Soube que há uma língua atualmente falada por um homem apenas. Como discutir? O mistério mais sutil é a banalidade. Nesse cotidiano, guardo contigo meu segredo supremo. Seria a criação do universo uma obra banal? As estrelas apontam, todas as noites, nossa morte [ou vida constelada emudecida]. Deus criou o homem e confiou ao diabo a tarefa do desfazimento. O diabo não tem limites. Seria a linguagem o extremo dessa falta?
Atentei-me demais ao detalhe, perdi o foco?
[vou reescrever]
(trad. joão monteiro)
(in Autoportret într-o oglindǎ spartǎ, Ed. Albatros, Bucareste, 2007)
Eugénio de Andrade
ADAGIO
O outono é isto –
apodrecer de um fruto
entre folhas esquecido.
Água escorrendo,
quem sabe donde,
ocasional e fria
e sem sentido.
(in primeiros poemas. Porto Editora, Porto, 2012)
Armando Silva Carvalho
MANHÃ
Acordo
mais um dia
com ele o turvo e torpe véu sedento
do desejo.
Não me doem as costas
a matéria dos sonhos ainda me persegue
translúcida no quarto.
Só o peso do chão
do negro chão da espera
se estende espesso a meu lado como mundo
e metáfora.
(in a vista desarmada, o tempo largo. Antologia. Poetas em homenagem a Vasco Graça Moura. Quetzal Editores, Lisboa, 2012)
Daniel Faria (3)
EXPLICAÇÃO DO HOMEM
Não me verga a velhice nem o peso do crâneo
Mas os olhos cansados na dor de te não ver.
O chão tornou-se a última paisagem.
No mais longínquo da terra te levantas
E vejo erguer-se a poeira dos teus pés.
***
OUTRA EXPLICAÇÃO DO HOMEM
Sem sede nem repouso
Perdido no andar nos lembra
A amplitude
De pés juntos desce à água
E nem o gume da corrente poderá
Desatar-lhe os tornozelos
E ao descer nos lembra
O torvelinho
***
EXPLICAÇÃO DA GRAVIDADE
A lei das coisas é tombar
Interrogando-se:
Só o pássaro vive para o voo.
Quando pousa é igual ao homem que se senta
Para pensar.
O homem pensa que nada é mais profundo
Que depois de Deus os filhos os sismos.
***
EXPLICAÇÃO DO POETA
Pousa devagar a enxada sobre o ombro
Já cavou muito silêncio
Como punhal brilha em suas costas
A lâmina contra o cansaço
(in POESIA, Assírio & Alvim, Porto, 2012)
Não me verga a velhice nem o peso do crâneo
Mas os olhos cansados na dor de te não ver.
O chão tornou-se a última paisagem.
No mais longínquo da terra te levantas
E vejo erguer-se a poeira dos teus pés.
***
OUTRA EXPLICAÇÃO DO HOMEM
Sem sede nem repouso
Perdido no andar nos lembra
A amplitude
De pés juntos desce à água
E nem o gume da corrente poderá
Desatar-lhe os tornozelos
E ao descer nos lembra
O torvelinho
***
EXPLICAÇÃO DA GRAVIDADE
A lei das coisas é tombar
Interrogando-se:
Só o pássaro vive para o voo.
Quando pousa é igual ao homem que se senta
Para pensar.
O homem pensa que nada é mais profundo
Que depois de Deus os filhos os sismos.
***
EXPLICAÇÃO DO POETA
Pousa devagar a enxada sobre o ombro
Já cavou muito silêncio
Como punhal brilha em suas costas
A lâmina contra o cansaço
(in POESIA, Assírio & Alvim, Porto, 2012)
domingo, 16 de junho de 2013
domingo, 2 de junho de 2013
João Cabral de Melo Neto (2)
PAISAGEM DO CAPIBARIBE
I
§ A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
§ O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
§ Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água do cântaro,
dos peixes da água,
da brisa na água.
§ Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
§ Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
§ Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.
§ Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.
§ E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávida de terra negra.
§ Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.
§ Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam como as ondas
densas e mornas
de uma cobra.
§ Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.
§ Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde veio se arrastando.
§ (É nelas,
mas de costas para o rio,
que "as grandes famílias espirituais"
[da cidade]
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).
§ Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?
§ Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?
[O cão sem plumas, 1949-1950]
(in Melhores Poemas João Cabral de Melo Neto, sel. Antonio Carlos Secchin, São Paulo: Global, 2010)
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