terça-feira, 27 de maio de 2014

Aglaja Veteranyi (3)

Pergunto à minha irmã por que Deus permite que a criança cozinhe na polenta.
Ela dá de ombros.
Se pergunto várias vezes, ela acaba cedendo e diz:
Mais tarde eu lhe conto.
 
Eu sei por que a criança cozinha na polenta, mesmo que minha irmã não queira me dizer.
 
A criança, de medo, se esconde no saco de farinha de milho. E adormece. A avó chega e joga a farinha dentro da água fervente, para fazer polenta para a criança. Quando a criança acorda, já está cozida. 
 
OU
A avó está cozinhando e diz para a criança: Cuida da polenta, mexe com esta colher enquanto eu vou lá fora buscar lenha.
Enquanto a avó está lá fora, a polenta diz para a criança: Estou tão cozida, você não quer brincar comigo?
E a criança pula na panela.
 
OU
Quando a criança morreu, Deus a cozinhou na polenta.
Deus é um cozinheiro, ele mora debaixo da terra e come os mortos. Com seus dentes, ele consegue partir todos os caixões.
 
PREFIRO HISTÓRIAS COM PESSOAS QUE COMEM OU SÃO COZIDAS.
 
Em cada nova cidade, cavo um buraco na terra em frente ao nosso trailer, coloco a mão lá dentro, depois a cabeça, e escuto Deus respirar e mastigar debaixo da terra. Às vezes, tenho vontade de cavar até encontrá-lo, apesar de ter medo de que ele me morda.
 
DEUS ESTÁ SEMPRE COM MUITA FOME.
 
Ele também gosta de tomar a minha limonada, coloco um canudinho na terra e lhe dou de beber, para que ele proteja minha mãe. E também ponho para ele, no buraco, um pouco da comida boa que minha mãe prepara.
 
As pessoas têm medo de Deus, por isso não vão para o céu. Lá existe um departamento especial para os artistas que sabem voar.
 
JESUS CRISTO TAMBÉM É UM ARTISTA.
 
(in por que a criança cozinha na polenta? trad. Fabiana Macchi, São Paulo, DBA Artes Gráficas, 2004)

sábado, 24 de maio de 2014

Felisberto Hernández (3)

FALSA EXPLICAÇÃO DE MEUS CONTOS

          Obrigado a fazê-lo ou ludibriado por mim mesmo, vejo-me impulsionado a revelar-lhes como escrevo meus contos, e eu o farei com explicações exteriores a eles. Não são completamente espontâneos, no sentido de não intervir a consciência. Isso seria antipático. Não são dominados por uma teoria da consciência. Isso seria extremamente antipático. Preferiria dizer que essa intervenção é misteriosa. Meus contos não têm estruturas lógicas. Apesar de uma vigilância constante e rigorosa, também a consciência me é desconhecida. Em certos momentos, penso que em algum recôndito meu nascerá uma planta. Começo a observá-la acreditando que em algum canto desse recôndito produziu-se algo raro, contudo com pendor artístico. Seria feliz se essa ideia não fracassasse completamente. Não obstante, devo esperar por um tempo indeterminado: não sei como germinar a planta, nem como regá-la, nem como fazê-la crescer: apenas permaneço firme em minha convicção de querer ver em suas folhas algo de poesia; ou algo que se transforme em poesia, conforme o olhar de quem a observa. Devo evitar que ela ocupe muito espaço, que não pretenda ser bela ou muito intensa, mas que seja apenas a exata planta predestinada; devo empenhar-me para que alcance seu destino. Ao mesmo tempo, ela crescerá sob os olhos de um observador que não prestará muita atenção em suas sutilezas, mais preocupado em propor-lhe grandezas. Se for uma planta dona de si, terá uma poesia natural, desconhecida por ela própria. Deverá ser como uma pessoa que não sabe mais quanto tempo viverá, com necessidades autênticas, com um orgulho discreto, meio acanhado e aparentemente improvisado. Ela mesma não conhecerá suas leis, ainda que profundamente as retenha e ainda que não as alcance a consciência. Não saberá o grau nem a maneira em que intervirá a consciência, mas em último caso imporá sua própria vontade. E ensinará a consciência a ser desprendida.
 
          O mais certo de tudo é que realmente não sei como escrevo meus contos, pois cada um deles tem uma vida independente e estranha aos outros e a mim. Sei também que vivem brigando com a consciência para que arredios observadores, recomendados por ela, jamais os leiam.   

[tradução de João Monteiro]

(in Las Hortensias y otros relatos, Buenos Aires: El Cuenco de Plata, 2009)

Georg Trakl

NASCIMENTO

Montanhas: negror neblina e neve.
Vermelha, a caça desce a floresta;
Oh, os olhares de musgo da presa.

Silêncio de mãe; sob pinheiros negros
Abrem-se as mãos dormentes
Quando, vencida, aparece a fria lua.

Oh, nascimento do Homem. Noturna murmura
A água azul no fundo da rocha;
O anjo decaído olha em suspiros sua imagem,

E pálido corpo desperta em câmara úmida.
Duas luas
Iluminam os olhos da anciã pétrea.

Dor, grito que dá à luz. Com asa negra
A noite toca a têmpora do menino,
Neve que desce de nuvem purpúrea.

[1913]

(in De Profundis, Tradução de Claudia Cavalcanti, São Paulo: Iluminuras, 2010)

terça-feira, 20 de maio de 2014

canção de amor


                                                           canção de amor  
 
                                                           teu olhar é sóbrio,
                                                           mas me desperta a insensatez

                                                           teu lábio é rio,
                                                           mas me faz secar

                                                           teu sorriso é luz,
                                                           mas me sombreia

                                                           teu amor é forte,
                                                           mas me enfraquece

domingo, 18 de maio de 2014

Augusto Roa Bastos

LÍMITE
a Josefina Plá

Cuando tocamos en la noche
el rostro vivo del recuerdo
su sangre moja nuestro nombre
y arden las manos hasta el hueso.

Canción de olvido en la tiniebla,
muerte acostada sobre el tiempo,
la mosca grávida y eterna
pone su huevo sobre el sexo.

De lábio a lábio se propaga,
germen axial del universo.
Donde se acaba la esperanza
se borra el límite del tiempo.

Cuando yo sople en mis cenizas
outro estará ya en mi momento,
las muchedumbres que me habitan
en mi costado las contemplo.

Ojo del hacha sin la lágrima,
música sin el instrumento,
siglos volando en una ráfaga
sobre los vivos y los muertos.

Esto es el hombre, la medida
de su congoja y pensamiento,
gusano de una fruta henchida,
cava la tierra y en el cielo.

El alma enciende su semblante
con un destello polvoriento.
Más alto siempre que su imagen
no tiene límite del deseo.

Suda el silencio sangre humana
y el ojo ya quemado y yerto
mira sin párpados la llama
en la memoria de un sol negro.

(in El naranjal ardiente, Assunción : Servi Libro, 2012)

quinta-feira, 15 de maio de 2014

na ausência

                                               a verdade dos ritos
                                               permeia o vazio das espécies
                                               os símbolos descontínuos
                                               implodem
                                               desconcertam-se
                                              
                                               em todas as tentativas
                                               a espera infinda se agita
                                               e rebenta
                                               aflorando
                                               a nudez ocultada
 
                                               toda a vida em círculos
                                               que, na ausência,
                                               suprem
                                               a opaca aridez
                                               da matéria

                                               os sentidos são reerguidos
                                               permanecem os votos e as preces
                                               para macular
                                               a castidade
                                               relegada

                                               a verdade dos ritos
                                               permeia o vazio das espécies

para no caer

                                               quedarme así,
 
                                               precipitado,
 
                                               no lo puedo
 


                                                           ni tampoco

                                                           precipicio tengo

Virada cultural na Casa das Rosas

PROGRAMAÇÃO:
(dias 17 e 18 de maio, das 17h do sábado às 18h do domingo)

http://casadasrosas.org.br/noticias/virada-cultural-2014-na-casa-das-rosas




















Destaques:
Dia 18 de maio:

0h – PALAVRAS ALADAS
Com Arthur Nogueira e Antonio Cicero

De um lado, um dos maiores autores brasileiros. Do outro, um jovem cantor e compositor. Parceiros em várias canções, Antonio Cicero e Arthur Nogueira apresentam o espetáculo lítero-musical Palavras Aladas. Textos de Cicero surgem “relidos” segundo a abordagem musical de Arthur Nogueira. O cantor atravessa o sentido dos poemas com a leitura sonora particular que o tornou importante parceiro do poeta. Cicero, por sua vez, cria novos respiros no som de Nogueira a partir de leituras que ultrapassam o campo da poesia.
 
2h – SARAU A PLENOS PULMÕES NA VIRADA
Com Marco Pezão e companhia

Todo primeiro sábado do mês, Marco Pezão comanda o Sarau A Plenos Pulmões na Casa das Rosas. Ícone do movimento de saraus em São Paulo, Pezão é misto de poeta e agitador cultural. Dedicado aos amantes da poesia escrita e falada, o microfone estará aberto a todos na Virada da Poesia. Lembrando que as inscrições começam à meia-noite.
 
4h – PEÇA A LUCIDEZ ALUCINA – POEMAS DE ORIDES FONTELA
Realização Cia. da Palavra, com a atriz Gisela Millás

Em cena, o encontro de duas artistas – a atriz e a poeta. Encontro que, com a palavra poética, traz para a cena ideias e emoções, com intensidade e potência, na atuação da atriz Gisela Millás. A peça trata da alma humana com intimidade, mas também com a aridez própria dos versos de Orides Fontela. Desse encontro nasce um espetáculo poético em que a atriz, solitária no caos das cenas e dos versos, traz a personalidade instigante da poeta – pouco lembrada e tão especial – Orides Fontela (1940-1998).
Atriz: Gisela Millás Roteiro Poético e Dramaturgia: Gisela Millás e Helder Mariani Trilha Sonora: Dagoberto Feliz Encenação: Helder Mariani

terça-feira, 13 de maio de 2014

domingo, 11 de maio de 2014

sábado, 10 de maio de 2014

coisa simples


                      a felicidade para mim é simples
                      não a espero em minha sala de estar

                     (apenas os convidados difíceis
                      temem a indiferença)

quinta-feira, 8 de maio de 2014

noturnos

                       noturnos
                      
                        a Orides Fontela


                       a ponta do lápis
                                  descartilha
                                     o grafite

                      a noite acinzenta
                                  o dia
                                     que passou

                      as horas dançam
                                  irritadiças

                      o gesto
                      a treva

                      rentes

                             à margem mímica:

                                              moldura

                                      *

                      sem crivo
                              grito

                                      música
                                                d'espera

                              (o musgo da noite
                        não
                            é silêncio
                                            )

meu deus


                              meu deus
                              habita um
                              cedro

                              decerto

                              está na seta
                              está no inseto

                              deserto

poesia floral


           poesia floral

              a Estamira


                                 tenho dentro
                                 uma flor
                                 que
                                                                  com estame
                                                                  'esmero
                                 m'empétala
                                                                  filetes e anteras
                                 para buscar
                                 monótonos conectivos
                                                                  aterrados
                                 em meu Jardim Gramacho

entre a lua


                                              entre a lua

                                              e          a maré :


                                              um oceano

Daniel Faria (9)


A casa vem das mãos para ficar desabrigada
Arbusto por abrir
Sono do bicho no degrau de entrada.
A casa vem demolir o homem
Envelhecer o pão.
Casa mártir, planície muito viajada
Cega a tactear as fendas das paredes.
Morada de si mesma. Árvore
Povoada

(explicação das casas in POESIA, Assírio & Alvim, Porto, 2012) 

Daniel Faria (8)


Estou dentro de paredes brancas.
Quatro paredes: a minha cela,
O frio, a solidão e o meu catre.
A luz entra sempre de noite.

Não tinha nada donde vim. Aqui não encontrei
O que tive e a cadeira não serve o meu repouso.
Ainda não há lugar no mundo onde possa sossegar de tu não seres
O vazio que persiste à minha beira.

Tenho um pequeno sonho de uma janela para abrir:
E que paisagem não seria estar feliz!

(explicação das casas in POESIA, Assírio & Alvim, Porto, 2012) 

Luiza Neto Jorge (8)

FÁBULA


O animal entende-se
tem cascos põe-os a render
tem pele aquece
fecha-se nos olhos para adormecer
tudo quanto lembra esquece

Dispende-se.
Permanece.

(in poesia, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001) 

Luiza Neto Jorge (8)

O POEMA ENSINA A CAIR


O poema ensina a cair
sobre vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma

(in poesia, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001)  

Orides Fontela (13)

TABELA

Existe


   resiste
   persiste
   insiste


               Desiste

(Helianto, 1973)
(in Poesia reunida, São Paulo: Cosac Naify, Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006)

Orides Fontela (12)

AXIOMAS

Sempre é melhor
saber
     que não saber.

     Sempre é melhor
     sofrer
     que não sofrer.

     Sempre é melhor
     desfazer
     que tecer.

(Teia, 1996)
(in Poesia reunida, São Paulo: Cosac Naify, Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006)

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Pelo malo (filme)

PELO MALO (Venezuela, 2013)
filme de Mariana Rondón

[vencedor da Concha de Oro do Festival de San Sebastián]
 
Filme belíssimo. Obra que enfrenta a dureza das dificuldades sociais na Venezuela com extremos lirismo, delicadeza e poesia. Roteiro inteligente. Boas atuações.
 
Filme que propõe uma reflexão sobre a superficialidade de nossos próprios preconceitos.  
 
Filme que precisa ser visto!
 
Em cartaz em São Paulo: Espaço Itaú de Cinema - Frei Caneca (dias e horários devem ser checados previamente).