quarta-feira, 30 de abril de 2014

Orides Fontela (11)

A ESTRELA PRÓXIMA

A poesia é
impossível

o amor é mais
que impossível

a vida, a morte loucamente
impossíveis.

Só a estrela, só a
estrela
existe

 só existe o impossível.

(Rosácea, 1986)
(in Poesia reunida, São Paulo: Cosac Naify, Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006)

Orides Fontela (10)

AS TROCAS


Um fruto por um
                             ácido
um sol por um
                             sigilo
o oceano por um
                             núcleo
o espaço por uma
                             fuga
a fuga por um
                             silêncio
 riqueza por uma
                             nudez.

(Alba, 1983)
(in Poesia reunida, São Paulo: Cosac Naify, Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006)

Orides Fontela (9)

ROTA

Há um rumo intacto, uma
absoluta aridez
na ave que repousa. Nela
o repouso é a rota: não há mais
necessidade de voo.

(Transposição, 1966-1967)
(in Poesia reunida, São Paulo: Cosac Naify, Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006)

A LUCIDEZ ALUCINA - Poemas de Orides Fontela


Peça teatral baseada em textos da poeta Orides Fontela (1940-1998).

Em cena, há a simulação de um encontro entre uma atriz e uma poeta.

Casa das Rosas - Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura
Av. Paulista, n. 37, Bela Vista, São Paulo.

Às sextas-feiras, até o dia 30/05/14, às 20h.
(entrada franca)

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Mário de Sá-Carneiro (3)

QUASE


Um pouco mais de sol –  eu era brasa.
Um pouco mais de azul –  eu era além.
Pra atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d'espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho  ó dor! – quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim  quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
–  Ai a dor de ser quase, dor sem-fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol  vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

..........................................................
..........................................................

Um pouco mais de sol –  eu era brasa.
Um pouco mais de azul –  eu era além.
Pra atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

                            Paris, 13 de maio de 1913.


(in Melhores poemas, seleção de Lucila Nogueira, São Paulo : Global, 2010)

Mário de Sá-Carneiro (2)

DE REPENTE A MINHA VIDA

... De repente a minha vida
Sumiu-se pela valeta...
Melhor deixá-la esquecida
No fundo duma gaveta...

(Se eu apagasse as lanternas
Para que ninguém mais me visse,
E a minha vida fugisse
Com o rabinho entre as pernas?...)

Novembro, 1915.


(in Melhores poemas, seleção de Lucila Nogueira, São Paulo : Global, 2010)

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Carlos Frias de Carvalho (6)


     boca de orvalho


     matas-me a sede
     mas logo me abrasas

     com a água que trazes
     na boca de orvalho

               *

     o coração é fogo e água


     o coração é fogo e água
     ao mesmo tempo

     - o sal que fica
     depois do vento

               *

     lugar da água


     não molhaste o chão que piso
     ou pela areia te sumiste
     sem deixares nenhum sinal

     nalgum verso subterrâneo
     hás-de ter o teu lugar
     ou uma linha passageira

     no deserto é tão exíguo
     tanto o corpo como o olhar
     e o grito é só poeira

               *

     argânia

    
     cresço
     como a argânia
     na fundura

     desmesuradamente

     em tua busca

               *

     divina luz


     divina luz
     por que te escondes
     na funda pedra
     antes do fogo


(in luz da água, coleção arcádia, Lisboa : Babel, 2010)

San Juan de la Cruz (2)

[Glosa a lo divino. De el mismo autor.]


     Por toda la hermosura
nunca yo me perderé,
sino por un no sé qué
que se alcança por ventura.

                    1

     Sabor de bien que es finito
lo más que puede llegar
es cansar el apetito
y estragar el paladar
y assí por toda dulçura
nunca yo me perderé
sino por un no sé qué
que se halla por ventura.

                    2

     El corazón generoso
nunca cura de parar
donde se puede passar
sino en más dificultoso
nada le causa hartura
y sube tanto su fee
que gusta de un no sé qué
que se halla por ventura.

                    3

     El que de amor adolesce
de el divino ser tocado
tiene el gusto tan trocado
que a los gustos desfallece
como el que con calentura
fastidia el manjar que ve
y apetece un no sé qué
que se halla por ventura.

                    4

     No os maravilléis de aquesto
que el gusto se quede tal
porque es la causa del mal
ajena de todo el resto
y assí toda criatura
enajenada se vee
y gusta de un no sé qué
que se halla por ventura.

                    5

     Que estando la voluntad
de divinidad tocada
no puede quedar pagada
sino con divinidad
mas, por ser tal su hermosura
que sólo se vee por fee,
gústala en un no sé qué
que se halla por ventura.

                    6

     Pues de tal enamorado
dezidme si abréis dolor
pues que no tiene sabor
entre todo lo criado
solo sin forma y figura
sin hallar arrimo y pie
gustando allá un no sé qué
que se halla por ventura.

                    7

     No penséis que el interior
que es de mucha más valia
halla gozo y alegría
en lo que acá da sabor
mas sobre toda hermosura
y lo que es y será y fue
gusta de allá un no sé qué
que se halla por ventura.

                    8

     Más emplea su cuydado
quien se quiere aventajar
en lo que está por ganar
que en lo que tiene ganado
y assí, para más altura
yo siempre me inclinaré
sobre todo a un no sé qué
que se halla por ventura.

                    9

     Por lo que por el sentido
puede acá comprehenderse
y todo lo que entenderse
aunque sea muy subido
ni por gracia y hermosura
yo nunca me perderé
sino por un no sé qué
que se halla por ventura.


(in Poesía, Catedra, Madrid, 2008)