sábado, 2 de julho de 2011

Willy Corrêa de Oliveira

Apocalipse no fundo do quintal

Já havia principiado a noite quando atravessei a cozinha e transpassei a porta que se abria para o patamar de onde descia a escada para o quintal bem mais abaixo de que o corpo da casa, e olho na direção do fundo do quintal, para além do muro e acolá, nem longe nem perto, vejo uma estrela deitada. Tenho que era noite de lua cheia. É certo que a estrela iluminava adormecida, o chão, a terra, o terreno vazio logo após o muro do meu quintal como sua cama e não o céu como eternamente havia acontecido desde o início dos tempos. Não recobro o que andava a fazer por ali no patamar da porta da cozinha, se me dirigia ao quintal por qualquer coisa, ou o que, quando vi a estrela no chão, adiante no terreno livre depois do muro do quintal onde se mora em criança. Não era um sucesso usual, um fato corriqueiro: exaltado, em glória, pânico, júbilo, desobrigo-me do que teria ido fazer e retornei para o interior da casa em estado de choque, feliz abalado, e sem mais demoras vim atender ao chamado (já impaciente) para que fosse me deitar. Que lavasse as mãos, pés, escovasse os dentes. “E não se esqueça de cuidar pra não fazer xixi fora da bacia.” Ladainhas para o ofício noturno. Os palavrórios não me azucrinaram. Fui ao cumprimento das ordens indiferente sem relatar nada do que vira pra ninguém. Na transcendência da beatitude, do enleio sutil e frágil em que me transbordava não tinha prumo para me comunicar com nenhum humano naquela hora. Só me era dado o silenciar, o ativar-me veemente no gozo. Uma estrela do céu, ali vizinha, deixar-se pousada no chão, adormecida, assim a uma corridinha de casa, manifesta. Sem mais era ir para cama (obediente) e calar e dormir tácito emudecido sem bulício, nem o mais mínimo alarido para que ninguém desfizesse o inescrutável, inesperado, o inerme sortilégio da estrela em abandono, tão cerca. Amanheci às pressas. E misteriosamente saí à procura de minha estrela no chão, dormida ao relento, em depois do contorno da rua de casa. Vis-à-vis do fundo, pertinho. O terreno, baldio, se espichava, creio que até ao mar mais distante. Que horror insípido: ela não mais se achava à vista. Em toda a volta, olhei, não se encontrava. Não se encontrava. Não a divisaria mais, sabia-o, sentia, e desisti: do prosseguir em sua busca porque o local era perigoso em excesso, com cacos de louça, vidros asquerosos, assassinos, latas cortantes (enferrujadas até ao tétano), guaiamus ferozes, e teria que ter me aventurado em longa caminhada até a praia e o mar bravio longe.

Mas não maldigo. Não escrevo: “Ah! um urubu pousou na minha sorte.” Nunca. Eu que jamais havia (sequer) entressonhado que uma estrela do firmamento viesse, quietinha, se pôr ali pouco além do muro do nosso quintal, sem ruídos, para mim. Por uma noite, em criança, tive uma estrela que brilhou pela minha vida inteira.


(in Passagens, Ed. Luzes do Asfalto, São Paulo, 2008)


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