sábado, 21 de dezembro de 2013

Adília Lopes

UM FIGO


Deixou cair a fotografia
um desconhecido correu atrás dela
para lhe entregar
ela recusou-se a pegar na fotografia
mas a senhora deixou cair isto
eu não posso ter deixado cair isto
porque isto não é meu
não queria que ninguém
e sobretudo um desconhecido
suspeitasse que havia uma relação 
entre ela e a fotografia
era como se tivesse deixado cair 
um lenço cheio de sangue
porque era ela quem estava na fotografia
e nada nos pertence tanto como o sangue
por isso quando uma pessoa se pica num dedo
leva logo o dedo à boca para chupar o sangue
o desconhecido apercebeu-se disso
é um retrato da senhora
pode ser o retrato de alguém muito parecido comigo
mas não sou eu
o desconhecido por ser muito bondoso
não insistiu
e como sabia que os mendigos
não têm dinheiro para tirar fotografias
deu a fotografia a um mendigo
que lhe chamou de figo


(in Antologia, Cosac & Naify, 7 Letras, 2002)

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