“Que meu povo me perdoe
Você que não sabe ler
tome meus poemas
tome meus livros
faça-os fogueira para aquecer suas solidões
que cada palavra alimente sua brasa
que cada sopro permaneça no céu que se abre
Você que não sabe escrever
que seu corpo e seu sangue me contem a história do país
fale
Seria ilusão do arco-íris
ser seu
deste corpo mutilado
Lerei os livros ao inverso
para ler melhor em seu rosto um campo de flores
Falarei a língua dos bosques e da terra
para entrar na multidão que se rebela
Desembarcarei nas feridas de sua memória
e habitarei seu corpo que se cala
Anunciaremos juntos a primavera às crianças desamparadas
Anunciaremos o sol moribundo ao astro que se esvazia
Anunciaremos uma nova vida à montanha anônima que avança
Enquanto eles tratam de sua burocracia
dançam e pisoteiam as costas de homens e mulheres
riem e comem o fígado das mães em luto
Devolveremos a besta desfigurada aos arquivos ministeriais
A história não intenta mais mudar
agarra-se às fibras da morte
e preside a sessão de abertura no abatedouro da cidade
Nossa história é um território de pragas que interrompe uma primavera de euforia
Lembre-se
semeávamos esperança pelos campos
retornávamos à cidade com a terra grávida
descobríamos as árvores selvagens prontas a tocar o céu
e os milhares de voluntários a conduzir o país ao cume solar
acreditávamos na aurora próspera
que atendia ao chamado das crianças
a rua dançava em nossos braços
esquecíamos que a luz podia criar uma alma estranha
inebriávamo-nos ao fogo para contemplar melhor o brilho do céu
Agora, cidade e o céu estão decompostos
o sonho estilhaçado derrama sua pena nas ruelas ermas
A esperança do povo está na espera:
longas sextas-feiras
para tomar vinho
para fumar kif
comendo vermes
sob o testemunho do sol
os outros
mãos e sexos corrompidos
jogam poker apostando nossa memória,
que se esvanece
(nossa memória repousa)
Povo,
minha cabeça está pesada
é carniça
fede o verbo
e, enfim, tomba
Entrego-a
à víbora maldita
nossa loucura
nossa cólera
Envoltas na maldição da serpente.”
(in Cicatrices du soleil / Cicatrizes do sol)
(trad. joão monteiro)
foto: Michel Giliberti ("porta azul")
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