domingo, 2 de junho de 2013
João Cabral de Melo Neto (2)
PAISAGEM DO CAPIBARIBE
I
§ A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
§ O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
§ Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água do cântaro,
dos peixes da água,
da brisa na água.
§ Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
§ Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
§ Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.
§ Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.
§ E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávida de terra negra.
§ Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.
§ Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam como as ondas
densas e mornas
de uma cobra.
§ Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.
§ Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde veio se arrastando.
§ (É nelas,
mas de costas para o rio,
que "as grandes famílias espirituais"
[da cidade]
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).
§ Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?
§ Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?
[O cão sem plumas, 1949-1950]
(in Melhores Poemas João Cabral de Melo Neto, sel. Antonio Carlos Secchin, São Paulo: Global, 2010)
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